terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Viagem a Bolívia parte 2: Perrengue na Cordilheira Tropical Boliviana e Ano-Novo em Cochabamba




Antes de começar, uma introdução rápida para quem dormia nas aulas de Geografia:

A Cordilheira dos Andes tem muitas facetas conhecidas, variando desde o altiplano, dos salares, dos vulcões, dos lagos e das cadeias de picos nevados. Essas dão um belo cartão postal para os que viajam para os países atravessados pela Cordilheira. Mas ela ainda tem outra faceta, a tropical, que é bastante parecida com as Serras do Sul e do Sudeste do Brasil, bastante florestadas, quentes e úmidas, presente em todos os países andinos exceto na Argentina e no Chile. É uma região extensa da Cordilheira que margeia toda a região amazônica, recebendo muita umidade proveniente da imensa floresta que, quando encontra as encostas e terrenos mais altos, acaba precipitando-se em grandes volumes de forma constante. 

Ou seja, é uma região que chove muito, principalmente na época entre Novembro e Abril, considerada a época (ainda mais) chuvosa. As estradas que atravessam essa área da Cordilheira, todas com traçado sinuoso, estreito e junto a desfiladeiros, estão sujeitas a longas interrupções devido a quedas de barreiras ou deslizamentos (conhecidos lá como aludes), que podem provocar longos transtornos para os viajantes que tomam esses caminhos, principalmente durante esse período. Além da chuva, há os terremotos, que por lá acontecem com certa frequência, e que também podem provocar esses mesmos transtornos. A famosa “Estrada da Morte” atravessa justamente essa região.

Na Bolívia boa parte do país também vive fora da zona da cordilheira, principalmente na região de Santa Cruz, e essas estradas que atravessam esse setor da Cordilheira são bastante utilizadas pelo transporte de passageiros e de cargas, e qualquer ocorrência pode virar um imenso transtorno. A principal rodovia do país, que interliga Santa Cruz, Cochabamba e La Paz, as três maiores cidades do país, é conhecida como Carretera Nueva (Estrada Nova) e atravessa essa região da Cordilheira Tropical, que na Bolívia também é conhecida como Yungas.

Essa estrada nova, no final, parece já ter nascido velha. O trecho da Cordilheira Tropical no geral é bem parecido a estradas de pista simples que atravessam as serras brasileiras, com a diferença de ser bem mais longo, atingindo altitudes no final de até 3000 metros, aonde há uma subida mudança de paisagem para os vales andinos. O trecho de planície é um pouco melhor, com várias pontes que atravessam os rios largos da área, mas passando dentro de centros urbanos como grandes avenidas com muita gente se arriscando em atravessar na frente dos carros a toda velocidade. Alguns locais estão com obras de recuperação e até de duplicação. No final da viagem, só resta pensar: que uma estrada dessas é considerada como “Nova”, eu nem quero passar perto de uma “Antiga”.

Tendo montado esse cenário, vamos ao relato daquele que foi o meu maior perrengue já enfrentado em uma viagem antes:



Dia 31/12/2015:
Durante a madrugada, consegui dormir na boa poltrona do ônibus. Eu me lembro de ter acordado algumas vezes e ter percebido o ônibus parando e andando aos poucos, o que achei que era um bom sinal, afinal apesar dos danos na estrada o fluxo estava seguindo sob algum controle. Eu acordei em definitivo as 7:00 com o ônibus parado na estrada e cercado por outros veículos, a maioria outros ônibus e caminhões, ocupando toda a extensão da pista.


Alguns passageiros do ônibus tinham descido e resolvi descer junto para ver a situação.


Estávamos parados em um trecho de serra, no meio de uma mata densa, ao longo de uma encosta com um rio abaixo, parecido com nossas serras no Brasil. O fluxo de veículos estava totalmente paralisado, e as pessoas estavam andando a pé. Algumas estavam abandonando os ônibus e levando as malas ladeira acima ou abaixo. Andei uns 500 metros para cima e não vi o final da fila. Perguntei para algumas pessoas que estavam descendo como estava a situação mais acima, e falaram que tinham pelo menos três pontos de deslizamento que estavam complicando a passagem, enfileirando tudo em um pequeno trecho de estrada que tinha sido aberto, e que caminhoneiros tinham trancado a estrada depois de carros estarem furando a fila sem parar. Falaram também que seria uma caminhada de 6 horas pelo menos até o final dos deslizamentos, já que somente motos estavam circulando. 

Voltei para o ônibus e conversei com o Mychel e o Lucas para ver o que seria melhor fazer: Esperar para ver se o tráfego fluía ou pegar as mochilas e seguir andando até além dos deslizamentos e ver se conseguíamos transporte até Cochabamba pelo menos, porque podia ter o risco de ficarmos ilhados ali por um dia inteiro, pelo menos. A bordo também tinha outro mochileiro brasileiro, o André, de Belo Horizonte. 

Decidimos esperar no ônibus até às 10 da manhã pra ver se o trânsito andava. Enquanto isso, os demais passageiros estavam, aos poucos, indo embora. Falaram que havia gente nos ônibus e caminhões que haviam esperado mais de um dia ali e não tinham saído do lugar. As pessoas lá fora discutiam em grupos sobre o que fazer. Às 10 horas quase todos os passageiros já tinham abandonado, ficando só nós os brasileiros e uma família com três crianças pequenas. Foi quando decidimos abandonar de vez o busão e seguir para Cochabamba do jeito que desse.

Já com a água e a comida no final, paramos em um barracão na estrada e compramos água mineral –que veio em saquinhos- enchemos as garrafas, ouvimos um monte de relatos diferentes –são 3, 4,6 horas até lá em cima- e decidimos continuar. Passamos por uma cachoeira na beira da estrada –o André resolveu ficar ali pra tomar um banho- e continuamos subindo, com o sol já alto na cabeça.


Pela estrada subiam e desciam muitos mototáxis, mas todos desciam e subiam cheios de gente e de tralha. Tentávamos fazer sinal para eles, mas nos ignoravam. Havia gente de tudo quanto é perfil caminhando, muitas bolivianas com as vestimentas típicas, famílias inteiras, crianças, jovens e idosos. Muitos parados em algum canto da estrada descansando a sombra. Nós também parávamos algumas vezes para descansar e para encher os cantis em pequenas fontes de água que vazavam em muitos pontos. Naquele lugar era melhor encarar a diarreia de amanhã do que a sede de hoje.


Depois da primeira hora de subida passamos pelo primeiro ponto de estrangulamento: Um pedaço da estrada que cedeu junto à encosta. Assustador, mas não comprometia a passagem de quem estava a pé.

Mais uma hora de subida para frente e quando atingimos a primeira erosão fluvial, e a que parecia ter sido a mais devastadora. Cerca de 300 metros da estrada estavam rodeados por pedras e detritos que vieram da avalanche, com máquinas e retroescavadeiras trabalhando. Sorte que o fluxo de água parecia estar controlado, mas ficaram no pavimento da estrada as marcas da lama. As pessoas que subiam se concentravam ali para passar com atenção, foi quando o André e uma outra brasileira nos alcançaram. Passamos entre detritos e máquinas com cautela e continuamos.


20 minutos depois, chegamos a outra erosão fluvial. Ali a água atravessava a estrada em vários pontos, e improvisaram uma travessia para os pedestres com toras de madeira. As encostas a beira da estrada e no outro lado do rio abaixo estavam cheias de escorregamentos, alguns tinham lixiviado o solo da encosta por completo, expondo a rocha por baixo. Mais um sinal de que o negócio havia sido sério ali.  

Mais 20 minutos a frente, foi quando houve a terceira erosão fluvial, e a mais difícil para passar. Na beira da encosta deu pra ver que a calha de águas fluviais do que um dia havia sido um riacho havia sido destruída e a água jorrava com força pela estrada. Seguimos pelo terreno mais seco que havia, mas houve um lugar em que não houve jeito e tivemos que enfiar até os tornozelos na água por um pedaço.



Após essa última erosão, reparamos que o fluxo de veículos subindo de vez em quando andava um pouco. Quando paramos mais uma vez, decidimos ver se não era melhor já abordar alguma condução, já que faziam umas 5 horas caminhando e sem comida. Mas qual e condução e como abordar. O cenário era diverso, havia gente apoiada nos para-choques e entre-eixos dos caminhões. Chegou um ponto em que reparei que havia algumas pessoas a bordo da caçamba vazia de um caminhão, e já muito cansado e exausto decidi apostar nele. Subi com um esforço danado na caçamba, e chamei o Lucas e o Mychel para subirem também, o André já havia saído da nossa vista.


Na caçamba do caminhão estavam já umas 10 pessoas, todas recolhidas pelo caminho. O co-piloto do caminhão subiu, um tiozinho simpático com a camisa do principal time de futebol de Cochabamba, o Jorge Wilstermann, perguntando se estavam todos bem, que estavam indo para Cochabamba, e cobrariam 10 bolivianos por pessoa. Ele próprio ainda disse que chegaríamos hoje lá, já que estávamos quase no fim e que ele mesmo havia levado dois dias preso na estrada. Tenso! No final, saíu até barato.

Aos poucos fomos andando, aos poucos o ritmo do pare-e-siga foi melhorando (e na medida em que isso acontecia mais gente ainda foi subindo a bordo da caçamba nos momentos parados). A estrada subiu em zigue-zague acentuado, se enfiando entre as nuvens, caindo aquela neblina e posteriormente a chuva, usamos a lona da caçamba como proteção.



O caminhão ainda levaria 1 hora nesse esquema de pare e siga mas seguindo já mais rápido do que se tivéssemos ido a pé. Até que finalmente começou a seguir sem parar, passando ao lado de mais uma erosão fluvial, a última delas, aonde alguns taxis e ônibus estavam aglomerados. Após esse ponto, o fluxo sentido Cochabamba finalmente fluiu livremente, e que alegria deu em todos no caminhão, geral rindo a toa. 

A estrada ainda continuaria a subir por muito tempo, e o caminhão andando bem, passamos no caminho por dois túneis bem escuros e com água vazando das paredes, o pessoal gritou como se fosse montanha-russa, foi muito divertido.


Quanto mais se subia naquela estrada, mas a paisagem mudava, a floresta aos poucos deu lugar para uma vegetação rasteira e encostas bem íngremes, onde aqui e ali ainda se viam alguns deslizamentos, e ficou bem mais frio também. Coloquei meus casacos e deitei um pouco no chão da caçamba, sentindo um pouco de tonteira, acho que foram os primeiros sinais da altitude. 

No final da longa subida a estrada passou por uma fenda estreita na montanha e adentrou um pequeno vale na Cordilheira, plano com uma placa indicando 3260 metros de altitude. Ali, outra súbita mudança de paisagem: As nuvens ficaram para atrás, o sol apareceu ainda quente e a vegetação mudou completamente: As únicas árvores eram pinheiros ralos e o solo era mais pedregoso e todo coberto de grama amarelada e flores, as casas da primeira vila que apareceu já eram feitas de pedra, assim como os muros que rodeavam os quintais, locais de criação de hortaliças, galinhas e cabras. Ali sim, para mim, começavam os Andes da forma como eu me lembrava, lá no Peru, com pequenos vales ladeados de montanhas cinzas e altas. Logo deram à cara as lhamas, alpacas e vicunhas.





As pessoas nas vilas vendiam na beira da estrada água mineral e frutas. Quando o caminhão parava para que alguém descesse ou subisse elas corriam e a negociação era rápida, com elas jogando as garrafas e nós jogando as moedinhas ao mesmo tempo. Depois a estrada voltou a subir, atingindo no ponto mais alto 3600 metros até descer e cair em outro vale, maior e bem mais urbanizado: O vale cochabambino.


Ladeado ao norte por um trecho grande e alto da Cordilheira, onde havia lido que cerca de 1 milhão e meio de pessoas vivem, e que Cochabamba era conhecida pelo seu clima agradável, a “só” 2700 metros de altitude, e pelas faculdades de medicina frequentadas por estrangeiros dos países vizinhos. 

 O caminhão foi deixando as pessoas pela avenida principal enquanto atravessava os bairros periféricos, e a última parada foi na entrada do centro de Cochabamba, a vista da estátua do Cristo Redentor, principal atração da cidade. Ela pode até ser maior que sua irmã carioca, mas a colina em que colocaram ela não chega nem aos pés do Pico do Corcovado. 

Tomamos o colectivo 233 para o terminal de ônibus de Cochabamba, onde chegamos as 17:40, para ver se conseguíamos ao menos metade do reembolso da passagem para La Paz e se ainda haveria forma de continuar viagem aquele dia. O guichê da Trans Copacabana estava fechado e no escritório dela no lado de fora tinha uma mulher mal-humorada fechando as portas e disse que aquilo não era problema dela, e que só no dia 2 poderíamos tentar reclamar qualquer valor, e só ali em Cochabamba. Demos esse dinheiro da passagem Santa Cruz – La Paz como perdido. 

Havia ainda uma última saída para La Paz as 18:00, com previsão de chegada as 00:40. Concordamos que não valia a pena, estávamos de saco cheio de estrada por aquele dia, e que já era muito bom termos conseguido sair daquela estrada deserta para passar a noite de ano-novo na cidade. Jantamos um frango frito em um fast-food de boa aparência no terminal e fomos buscar uma hospedagem.


Os arredores do Terminal de Cochabamba são cheios de hotéis de várias categorias, mas as ruas são bem movimentadas e barulhentas, com um monte de vendedores ambulantes. Resolvemos ficar no Hotel Zabidi, a umas duas quadras do terminal, que fez por 85 bolivianos a diária do quarto para 3, ou seja, cerca de 28 bolivianos (15 reais) por pessoa. O quarto era amplo e limpo, tinha um bom sinal de wifi, a TV passava canais de praticamente todos os países da América Latina (inclusive Globo, SBT e Record). O banheiro era fora do quarto, mas tinha água quente.

Dei minhas notícias para família, tomei aquele banho que não tomava há 4 dias, e descansamos. Resolvemos sair quando eram umas 10 da noite para ver se haveria alguma festa pública ou algum lugar para beber uma cerveja quando fosse meia-noite. Mas a verdade é que a noite em Cochabamba foi bem deprimente. 

Seguimos a rua do nosso hotel, sem ninguém praticamente e com lixo acumulado em algumas esquinas, por 6 quadras até a Praça Bolívar, a principal do Centro, com a Catedral e prédios adornados com arcos, totalmente cheia de tapumes de obras e completamente vazia. Fomos recomendados por um par de policiais a paisana a ir até a Calle España, a outras 2 quadras mais para a frente, onde achamos um pub que servia cerveja gelada, de uma marca local. Estava bom, mas o preço era um pouco salgado. Na área tinham também umas duas boates, cheias, com umas minas nada más na porta (com certeza eram argentinas, pensei), mas nós estávamos de bermuda e chinelos, então nem rolaria de entrar.


No caminho do hostal passamos por um depósito de bebidas onde pudemos comprar umas paceñas (quentes!) e água, e do nosso quarto acompanhamos a chegada de 2016, vendo os vizinhos no prédio da frente lançarem alguns foguetinhos e um pessoal na calçada soltar uns rojões rasantes, e ao longe víamos alguns fogos mais sérios, mas nada impressionante.


No próximo post, vem a última etapa da viagem com a chegada (finalmente!) à La Paz.


Na série de mapas do post vem o passo-a-passo das etapas da viagem, com destaque para o trecho da estrada percorrido a pé, com o ponto de cada deslizamento e um comparativo de como era antes com o Google Street View.
Até a próxima!

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