Antes de começar, uma introdução rápida para quem dormia nas aulas de Geografia:
A Cordilheira dos Andes tem muitas facetas conhecidas,
variando desde o altiplano, dos salares, dos vulcões, dos lagos e das cadeias
de picos nevados. Essas dão um belo cartão postal para os que viajam para os
países atravessados pela Cordilheira. Mas ela ainda tem outra faceta, a
tropical, que é bastante parecida com as Serras do Sul e do Sudeste do Brasil,
bastante florestadas, quentes e úmidas, presente em todos os países andinos
exceto na Argentina e no Chile. É uma região extensa da Cordilheira que margeia
toda a região amazônica, recebendo muita umidade proveniente da imensa floresta
que, quando encontra as encostas e terrenos mais altos, acaba precipitando-se
em grandes volumes de forma constante.
Ou seja, é uma região
que chove muito, principalmente na época entre Novembro e Abril, considerada a
época (ainda mais) chuvosa. As estradas que atravessam essa área da Cordilheira,
todas com traçado sinuoso, estreito e junto a desfiladeiros, estão sujeitas a
longas interrupções devido a quedas de barreiras ou deslizamentos (conhecidos
lá como aludes), que podem provocar longos transtornos para os viajantes que
tomam esses caminhos, principalmente durante esse período. Além da chuva, há os
terremotos, que por lá acontecem com certa frequência, e que também podem
provocar esses mesmos transtornos. A famosa “Estrada da Morte” atravessa
justamente essa região.
Na Bolívia boa parte do país também vive fora da zona da
cordilheira, principalmente na região de Santa Cruz, e essas estradas que
atravessam esse setor da Cordilheira são bastante utilizadas pelo transporte de
passageiros e de cargas, e qualquer ocorrência pode virar um imenso transtorno.
A principal rodovia do país, que interliga Santa Cruz, Cochabamba e La Paz, as
três maiores cidades do país, é conhecida como Carretera Nueva (Estrada Nova) e
atravessa essa região da Cordilheira Tropical, que na Bolívia também é
conhecida como Yungas.
Essa estrada nova, no final, parece já ter nascido velha. O
trecho da Cordilheira Tropical no geral é bem parecido a estradas de pista
simples que atravessam as serras brasileiras, com a diferença de ser bem mais
longo, atingindo altitudes no final de até 3000 metros, aonde há uma subida
mudança de paisagem para os vales andinos. O trecho de planície é um pouco
melhor, com várias pontes que atravessam os rios largos da área, mas passando
dentro de centros urbanos como grandes avenidas com muita gente se arriscando
em atravessar na frente dos carros a toda velocidade. Alguns locais estão com
obras de recuperação e até de duplicação. No final da viagem, só resta pensar:
que uma estrada dessas é considerada como “Nova”, eu nem quero passar perto de
uma “Antiga”.
Tendo montado esse cenário, vamos ao relato daquele que foi
o meu maior perrengue já enfrentado em uma viagem antes:
Dia 31/12/2015:
Durante a madrugada, consegui dormir na boa poltrona do
ônibus. Eu me lembro de ter acordado algumas vezes e ter percebido o ônibus
parando e andando aos poucos, o que achei que era um bom sinal, afinal apesar
dos danos na estrada o fluxo estava seguindo sob algum controle. Eu acordei em
definitivo as 7:00 com o ônibus parado na estrada e cercado por outros
veículos, a maioria outros ônibus e caminhões, ocupando toda a extensão da
pista.
Alguns passageiros do ônibus tinham descido e resolvi descer junto para ver a situação.
Na série de mapas do post vem o passo-a-passo das etapas da viagem, com destaque para o trecho da estrada percorrido a pé, com o ponto de cada deslizamento e um comparativo de como era antes com o Google Street View.
Alguns passageiros do ônibus tinham descido e resolvi descer junto para ver a situação.
Estávamos parados em um trecho de serra, no meio de uma mata
densa, ao longo de uma encosta com um rio abaixo, parecido com nossas serras no
Brasil. O fluxo de veículos estava totalmente paralisado, e as pessoas estavam
andando a pé. Algumas estavam abandonando os ônibus e levando as malas ladeira
acima ou abaixo. Andei uns 500 metros para cima e não vi o final da fila.
Perguntei para algumas pessoas que estavam descendo como estava a situação mais
acima, e falaram que tinham pelo menos três pontos de deslizamento que estavam
complicando a passagem, enfileirando tudo em um pequeno trecho de estrada que
tinha sido aberto, e que caminhoneiros tinham trancado a estrada depois de carros
estarem furando a fila sem parar. Falaram também que seria uma caminhada de 6
horas pelo menos até o final dos deslizamentos, já que somente motos estavam
circulando.
Voltei para o ônibus e conversei com o Mychel e o Lucas para
ver o que seria melhor fazer: Esperar para ver se o tráfego fluía ou pegar as
mochilas e seguir andando até além dos deslizamentos e ver se conseguíamos
transporte até Cochabamba pelo menos, porque podia ter o risco de ficarmos
ilhados ali por um dia inteiro, pelo menos. A bordo também tinha outro
mochileiro brasileiro, o André, de Belo Horizonte.
Decidimos esperar no ônibus até às 10 da manhã pra ver se o
trânsito andava. Enquanto isso, os demais passageiros estavam, aos poucos, indo
embora. Falaram que havia gente nos ônibus e caminhões que haviam esperado mais
de um dia ali e não tinham saído do lugar. As pessoas lá fora discutiam em
grupos sobre o que fazer. Às 10 horas quase todos os passageiros já tinham
abandonado, ficando só nós os brasileiros e uma família com três crianças
pequenas. Foi quando decidimos abandonar de vez o busão e seguir para
Cochabamba do jeito que desse.
Já com a água e a comida no final, paramos em um barracão na
estrada e compramos água mineral –que veio em saquinhos- enchemos as garrafas,
ouvimos um monte de relatos diferentes –são 3, 4,6 horas até lá em cima- e
decidimos continuar. Passamos por uma cachoeira na beira da estrada –o André
resolveu ficar ali pra tomar um banho- e continuamos subindo, com o sol já alto
na cabeça.
Pela estrada subiam e desciam muitos mototáxis, mas todos
desciam e subiam cheios de gente e de tralha. Tentávamos fazer sinal para eles,
mas nos ignoravam. Havia gente de tudo quanto é perfil caminhando, muitas
bolivianas com as vestimentas típicas, famílias inteiras, crianças, jovens e
idosos. Muitos parados em algum canto da estrada descansando a sombra. Nós
também parávamos algumas vezes para descansar e para encher os cantis em pequenas fontes de água que vazavam em muitos pontos. Naquele lugar era melhor encarar a diarreia de amanhã do que a sede de hoje.
Depois da primeira hora de subida passamos pelo primeiro ponto
de estrangulamento: Um pedaço da estrada que cedeu junto à encosta. Assustador,
mas não comprometia a passagem de quem estava a pé.
Mais uma hora de subida para frente e quando atingimos a
primeira erosão fluvial, e a que parecia ter sido a mais devastadora. Cerca de
300 metros da estrada estavam rodeados por pedras e detritos que vieram da
avalanche, com máquinas e retroescavadeiras trabalhando. Sorte que o fluxo de
água parecia estar controlado, mas ficaram no pavimento da estrada as marcas da
lama. As pessoas que subiam se concentravam ali para passar com atenção, foi
quando o André e uma outra brasileira nos alcançaram. Passamos entre detritos e
máquinas com cautela e continuamos.
20 minutos depois, chegamos a outra erosão fluvial. Ali a
água atravessava a estrada em vários pontos, e improvisaram uma travessia para
os pedestres com toras de madeira. As encostas a beira da estrada e no outro
lado do rio abaixo estavam cheias de escorregamentos, alguns tinham lixiviado o
solo da encosta por completo, expondo a rocha por baixo. Mais um sinal de que o
negócio havia sido sério ali.
Mais 20 minutos a frente, foi quando houve a terceira erosão
fluvial, e a mais difícil para passar. Na beira da encosta deu pra ver que a
calha de águas fluviais do que um dia havia sido um riacho havia sido destruída
e a água jorrava com força pela estrada. Seguimos pelo terreno mais seco que
havia, mas houve um lugar em que não houve jeito e tivemos que enfiar até os
tornozelos na água por um pedaço.
Após essa última erosão, reparamos que o fluxo de veículos
subindo de vez em quando andava um pouco. Quando paramos mais uma vez,
decidimos ver se não era melhor já abordar alguma condução, já que faziam umas
5 horas caminhando e sem comida. Mas qual e condução e como abordar. O cenário
era diverso, havia gente apoiada nos para-choques e entre-eixos dos caminhões.
Chegou um ponto em que reparei que havia algumas pessoas a bordo da caçamba vazia
de um caminhão, e já muito cansado e exausto decidi apostar nele. Subi com um
esforço danado na caçamba, e chamei o Lucas e o Mychel para subirem também, o
André já havia saído da nossa vista.
Na caçamba do caminhão estavam já umas 10 pessoas, todas
recolhidas pelo caminho. O co-piloto do caminhão subiu, um tiozinho simpático
com a camisa do principal time de futebol de Cochabamba, o Jorge Wilstermann,
perguntando se estavam todos bem, que estavam indo para Cochabamba, e cobrariam
10 bolivianos por pessoa. Ele próprio ainda disse que chegaríamos hoje lá, já
que estávamos quase no fim e que ele mesmo havia levado dois dias preso na
estrada. Tenso! No final, saíu até barato.
Aos poucos fomos andando, aos poucos o ritmo do pare-e-siga foi melhorando (e na medida em que isso acontecia mais gente ainda foi subindo a bordo da caçamba nos momentos parados). A estrada subiu em zigue-zague acentuado, se enfiando entre as nuvens, caindo aquela neblina e posteriormente a chuva, usamos a lona da caçamba como proteção.
Aos poucos fomos andando, aos poucos o ritmo do pare-e-siga foi melhorando (e na medida em que isso acontecia mais gente ainda foi subindo a bordo da caçamba nos momentos parados). A estrada subiu em zigue-zague acentuado, se enfiando entre as nuvens, caindo aquela neblina e posteriormente a chuva, usamos a lona da caçamba como proteção.
O caminhão ainda levaria 1 hora nesse esquema de pare e siga
mas seguindo já mais rápido do que se tivéssemos ido a pé. Até que finalmente
começou a seguir sem parar, passando ao lado de mais uma erosão fluvial, a
última delas, aonde alguns taxis e ônibus estavam aglomerados. Após esse ponto,
o fluxo sentido Cochabamba finalmente fluiu livremente, e que alegria deu em
todos no caminhão, geral rindo a toa.
A estrada ainda continuaria a subir por
muito tempo, e o caminhão andando bem, passamos no caminho por dois túneis bem
escuros e com água vazando das paredes, o pessoal gritou como se fosse
montanha-russa, foi muito divertido.
Quanto mais se subia naquela estrada, mas a paisagem mudava,
a floresta aos poucos deu lugar para uma vegetação rasteira e encostas bem
íngremes, onde aqui e ali ainda se viam alguns deslizamentos, e ficou bem mais
frio também. Coloquei meus casacos e deitei um pouco no chão da caçamba,
sentindo um pouco de tonteira, acho que foram os primeiros sinais da altitude.
No
final da longa subida a estrada passou por uma fenda estreita na montanha e
adentrou um pequeno vale na Cordilheira, plano com uma placa indicando 3260 metros
de altitude. Ali, outra súbita mudança de paisagem: As nuvens ficaram para
atrás, o sol apareceu ainda quente e a vegetação mudou completamente: As únicas
árvores eram pinheiros ralos e o solo era mais pedregoso e todo coberto de
grama amarelada e flores, as casas da primeira vila que apareceu já eram feitas
de pedra, assim como os muros que rodeavam os quintais, locais de criação de hortaliças,
galinhas e cabras. Ali sim, para mim, começavam os Andes da forma como eu me lembrava,
lá no Peru, com pequenos vales ladeados de montanhas cinzas e altas. Logo deram
à cara as lhamas, alpacas e vicunhas.
As pessoas nas vilas vendiam na beira da estrada água
mineral e frutas. Quando o caminhão parava para que alguém descesse ou subisse
elas corriam e a negociação era rápida, com elas jogando as garrafas e nós
jogando as moedinhas ao mesmo tempo. Depois a estrada voltou a subir, atingindo
no ponto mais alto 3600 metros até descer e cair em outro vale, maior e bem
mais urbanizado: O vale cochabambino.
Ladeado ao norte por um trecho grande e alto da Cordilheira, onde havia lido que cerca de 1 milhão e meio de pessoas vivem, e que Cochabamba era conhecida pelo seu clima agradável, a “só” 2700 metros de altitude, e pelas faculdades de medicina frequentadas por estrangeiros dos países vizinhos.
Ladeado ao norte por um trecho grande e alto da Cordilheira, onde havia lido que cerca de 1 milhão e meio de pessoas vivem, e que Cochabamba era conhecida pelo seu clima agradável, a “só” 2700 metros de altitude, e pelas faculdades de medicina frequentadas por estrangeiros dos países vizinhos.
O caminhão foi deixando as pessoas pela
avenida principal enquanto atravessava os bairros periféricos, e a última
parada foi na entrada do centro de Cochabamba, a vista da estátua do Cristo
Redentor, principal atração da cidade. Ela pode até ser maior que sua irmã
carioca, mas a colina em que colocaram ela não chega nem aos pés do Pico do
Corcovado.
Tomamos o colectivo 233 para o terminal de ônibus de
Cochabamba, onde chegamos as 17:40, para ver se conseguíamos ao menos metade do
reembolso da passagem para La Paz e se ainda haveria forma de continuar viagem
aquele dia. O guichê da Trans Copacabana estava fechado e no escritório dela no
lado de fora tinha uma mulher mal-humorada fechando as portas e disse que
aquilo não era problema dela, e que só no dia 2 poderíamos tentar reclamar qualquer
valor, e só ali em Cochabamba. Demos esse dinheiro da passagem Santa Cruz – La Paz
como perdido.
Havia ainda uma última saída para La Paz as 18:00, com previsão de
chegada as 00:40. Concordamos que não valia a pena, estávamos de saco cheio de
estrada por aquele dia, e que já era muito bom termos conseguido sair daquela
estrada deserta para passar a noite de ano-novo na cidade. Jantamos um frango frito
em um fast-food de boa aparência no terminal e fomos buscar uma hospedagem.
Os arredores do Terminal de Cochabamba são cheios de hotéis
de várias categorias, mas as ruas são bem movimentadas e barulhentas, com um
monte de vendedores ambulantes. Resolvemos ficar no Hotel Zabidi, a umas duas
quadras do terminal, que fez por 85 bolivianos a diária do quarto para 3, ou
seja, cerca de 28 bolivianos (15 reais) por pessoa. O quarto era amplo e limpo,
tinha um bom sinal de wifi, a TV passava canais de praticamente todos os países
da América Latina (inclusive Globo, SBT e Record). O banheiro era fora do
quarto, mas tinha água quente.
Dei minhas notícias para família, tomei aquele banho que não
tomava há 4 dias, e descansamos. Resolvemos sair quando eram umas 10 da noite
para ver se haveria alguma festa pública ou algum lugar para beber uma cerveja
quando fosse meia-noite. Mas a verdade é que a noite em Cochabamba foi bem
deprimente.
Seguimos a rua do nosso hotel, sem ninguém praticamente e com lixo
acumulado em algumas esquinas, por 6 quadras até a Praça Bolívar, a principal
do Centro, com a Catedral e prédios adornados com arcos, totalmente cheia de
tapumes de obras e completamente vazia. Fomos recomendados por um par de
policiais a paisana a ir até a Calle España, a outras 2 quadras mais para a
frente, onde achamos um pub que servia cerveja gelada, de uma marca local.
Estava bom, mas o preço era um pouco salgado. Na área tinham também umas duas
boates, cheias, com umas minas nada más na porta (com certeza eram argentinas,
pensei), mas nós estávamos de bermuda e chinelos, então nem rolaria de entrar.
No caminho do hostal passamos por um depósito de bebidas
onde pudemos comprar umas paceñas (quentes!) e água, e do nosso quarto
acompanhamos a chegada de 2016, vendo os vizinhos no prédio da frente lançarem
alguns foguetinhos e um pessoal na calçada soltar uns rojões rasantes, e ao
longe víamos alguns fogos mais sérios, mas nada impressionante.
No próximo post, vem a última etapa da viagem com a chegada
(finalmente!) à La Paz.
Na série de mapas do post vem o passo-a-passo das etapas da viagem, com destaque para o trecho da estrada percorrido a pé, com o ponto de cada deslizamento e um comparativo de como era antes com o Google Street View.
Até a próxima!