terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Viagem a Bolívia parte 2: Perrengue na Cordilheira Tropical Boliviana e Ano-Novo em Cochabamba




Antes de começar, uma introdução rápida para quem dormia nas aulas de Geografia:

A Cordilheira dos Andes tem muitas facetas conhecidas, variando desde o altiplano, dos salares, dos vulcões, dos lagos e das cadeias de picos nevados. Essas dão um belo cartão postal para os que viajam para os países atravessados pela Cordilheira. Mas ela ainda tem outra faceta, a tropical, que é bastante parecida com as Serras do Sul e do Sudeste do Brasil, bastante florestadas, quentes e úmidas, presente em todos os países andinos exceto na Argentina e no Chile. É uma região extensa da Cordilheira que margeia toda a região amazônica, recebendo muita umidade proveniente da imensa floresta que, quando encontra as encostas e terrenos mais altos, acaba precipitando-se em grandes volumes de forma constante. 

Ou seja, é uma região que chove muito, principalmente na época entre Novembro e Abril, considerada a época (ainda mais) chuvosa. As estradas que atravessam essa área da Cordilheira, todas com traçado sinuoso, estreito e junto a desfiladeiros, estão sujeitas a longas interrupções devido a quedas de barreiras ou deslizamentos (conhecidos lá como aludes), que podem provocar longos transtornos para os viajantes que tomam esses caminhos, principalmente durante esse período. Além da chuva, há os terremotos, que por lá acontecem com certa frequência, e que também podem provocar esses mesmos transtornos. A famosa “Estrada da Morte” atravessa justamente essa região.

Na Bolívia boa parte do país também vive fora da zona da cordilheira, principalmente na região de Santa Cruz, e essas estradas que atravessam esse setor da Cordilheira são bastante utilizadas pelo transporte de passageiros e de cargas, e qualquer ocorrência pode virar um imenso transtorno. A principal rodovia do país, que interliga Santa Cruz, Cochabamba e La Paz, as três maiores cidades do país, é conhecida como Carretera Nueva (Estrada Nova) e atravessa essa região da Cordilheira Tropical, que na Bolívia também é conhecida como Yungas.

Essa estrada nova, no final, parece já ter nascido velha. O trecho da Cordilheira Tropical no geral é bem parecido a estradas de pista simples que atravessam as serras brasileiras, com a diferença de ser bem mais longo, atingindo altitudes no final de até 3000 metros, aonde há uma subida mudança de paisagem para os vales andinos. O trecho de planície é um pouco melhor, com várias pontes que atravessam os rios largos da área, mas passando dentro de centros urbanos como grandes avenidas com muita gente se arriscando em atravessar na frente dos carros a toda velocidade. Alguns locais estão com obras de recuperação e até de duplicação. No final da viagem, só resta pensar: que uma estrada dessas é considerada como “Nova”, eu nem quero passar perto de uma “Antiga”.

Tendo montado esse cenário, vamos ao relato daquele que foi o meu maior perrengue já enfrentado em uma viagem antes:



Dia 31/12/2015:
Durante a madrugada, consegui dormir na boa poltrona do ônibus. Eu me lembro de ter acordado algumas vezes e ter percebido o ônibus parando e andando aos poucos, o que achei que era um bom sinal, afinal apesar dos danos na estrada o fluxo estava seguindo sob algum controle. Eu acordei em definitivo as 7:00 com o ônibus parado na estrada e cercado por outros veículos, a maioria outros ônibus e caminhões, ocupando toda a extensão da pista.


Alguns passageiros do ônibus tinham descido e resolvi descer junto para ver a situação.


Estávamos parados em um trecho de serra, no meio de uma mata densa, ao longo de uma encosta com um rio abaixo, parecido com nossas serras no Brasil. O fluxo de veículos estava totalmente paralisado, e as pessoas estavam andando a pé. Algumas estavam abandonando os ônibus e levando as malas ladeira acima ou abaixo. Andei uns 500 metros para cima e não vi o final da fila. Perguntei para algumas pessoas que estavam descendo como estava a situação mais acima, e falaram que tinham pelo menos três pontos de deslizamento que estavam complicando a passagem, enfileirando tudo em um pequeno trecho de estrada que tinha sido aberto, e que caminhoneiros tinham trancado a estrada depois de carros estarem furando a fila sem parar. Falaram também que seria uma caminhada de 6 horas pelo menos até o final dos deslizamentos, já que somente motos estavam circulando. 

Voltei para o ônibus e conversei com o Mychel e o Lucas para ver o que seria melhor fazer: Esperar para ver se o tráfego fluía ou pegar as mochilas e seguir andando até além dos deslizamentos e ver se conseguíamos transporte até Cochabamba pelo menos, porque podia ter o risco de ficarmos ilhados ali por um dia inteiro, pelo menos. A bordo também tinha outro mochileiro brasileiro, o André, de Belo Horizonte. 

Decidimos esperar no ônibus até às 10 da manhã pra ver se o trânsito andava. Enquanto isso, os demais passageiros estavam, aos poucos, indo embora. Falaram que havia gente nos ônibus e caminhões que haviam esperado mais de um dia ali e não tinham saído do lugar. As pessoas lá fora discutiam em grupos sobre o que fazer. Às 10 horas quase todos os passageiros já tinham abandonado, ficando só nós os brasileiros e uma família com três crianças pequenas. Foi quando decidimos abandonar de vez o busão e seguir para Cochabamba do jeito que desse.

Já com a água e a comida no final, paramos em um barracão na estrada e compramos água mineral –que veio em saquinhos- enchemos as garrafas, ouvimos um monte de relatos diferentes –são 3, 4,6 horas até lá em cima- e decidimos continuar. Passamos por uma cachoeira na beira da estrada –o André resolveu ficar ali pra tomar um banho- e continuamos subindo, com o sol já alto na cabeça.


Pela estrada subiam e desciam muitos mototáxis, mas todos desciam e subiam cheios de gente e de tralha. Tentávamos fazer sinal para eles, mas nos ignoravam. Havia gente de tudo quanto é perfil caminhando, muitas bolivianas com as vestimentas típicas, famílias inteiras, crianças, jovens e idosos. Muitos parados em algum canto da estrada descansando a sombra. Nós também parávamos algumas vezes para descansar e para encher os cantis em pequenas fontes de água que vazavam em muitos pontos. Naquele lugar era melhor encarar a diarreia de amanhã do que a sede de hoje.


Depois da primeira hora de subida passamos pelo primeiro ponto de estrangulamento: Um pedaço da estrada que cedeu junto à encosta. Assustador, mas não comprometia a passagem de quem estava a pé.

Mais uma hora de subida para frente e quando atingimos a primeira erosão fluvial, e a que parecia ter sido a mais devastadora. Cerca de 300 metros da estrada estavam rodeados por pedras e detritos que vieram da avalanche, com máquinas e retroescavadeiras trabalhando. Sorte que o fluxo de água parecia estar controlado, mas ficaram no pavimento da estrada as marcas da lama. As pessoas que subiam se concentravam ali para passar com atenção, foi quando o André e uma outra brasileira nos alcançaram. Passamos entre detritos e máquinas com cautela e continuamos.


20 minutos depois, chegamos a outra erosão fluvial. Ali a água atravessava a estrada em vários pontos, e improvisaram uma travessia para os pedestres com toras de madeira. As encostas a beira da estrada e no outro lado do rio abaixo estavam cheias de escorregamentos, alguns tinham lixiviado o solo da encosta por completo, expondo a rocha por baixo. Mais um sinal de que o negócio havia sido sério ali.  

Mais 20 minutos a frente, foi quando houve a terceira erosão fluvial, e a mais difícil para passar. Na beira da encosta deu pra ver que a calha de águas fluviais do que um dia havia sido um riacho havia sido destruída e a água jorrava com força pela estrada. Seguimos pelo terreno mais seco que havia, mas houve um lugar em que não houve jeito e tivemos que enfiar até os tornozelos na água por um pedaço.



Após essa última erosão, reparamos que o fluxo de veículos subindo de vez em quando andava um pouco. Quando paramos mais uma vez, decidimos ver se não era melhor já abordar alguma condução, já que faziam umas 5 horas caminhando e sem comida. Mas qual e condução e como abordar. O cenário era diverso, havia gente apoiada nos para-choques e entre-eixos dos caminhões. Chegou um ponto em que reparei que havia algumas pessoas a bordo da caçamba vazia de um caminhão, e já muito cansado e exausto decidi apostar nele. Subi com um esforço danado na caçamba, e chamei o Lucas e o Mychel para subirem também, o André já havia saído da nossa vista.


Na caçamba do caminhão estavam já umas 10 pessoas, todas recolhidas pelo caminho. O co-piloto do caminhão subiu, um tiozinho simpático com a camisa do principal time de futebol de Cochabamba, o Jorge Wilstermann, perguntando se estavam todos bem, que estavam indo para Cochabamba, e cobrariam 10 bolivianos por pessoa. Ele próprio ainda disse que chegaríamos hoje lá, já que estávamos quase no fim e que ele mesmo havia levado dois dias preso na estrada. Tenso! No final, saíu até barato.

Aos poucos fomos andando, aos poucos o ritmo do pare-e-siga foi melhorando (e na medida em que isso acontecia mais gente ainda foi subindo a bordo da caçamba nos momentos parados). A estrada subiu em zigue-zague acentuado, se enfiando entre as nuvens, caindo aquela neblina e posteriormente a chuva, usamos a lona da caçamba como proteção.



O caminhão ainda levaria 1 hora nesse esquema de pare e siga mas seguindo já mais rápido do que se tivéssemos ido a pé. Até que finalmente começou a seguir sem parar, passando ao lado de mais uma erosão fluvial, a última delas, aonde alguns taxis e ônibus estavam aglomerados. Após esse ponto, o fluxo sentido Cochabamba finalmente fluiu livremente, e que alegria deu em todos no caminhão, geral rindo a toa. 

A estrada ainda continuaria a subir por muito tempo, e o caminhão andando bem, passamos no caminho por dois túneis bem escuros e com água vazando das paredes, o pessoal gritou como se fosse montanha-russa, foi muito divertido.


Quanto mais se subia naquela estrada, mas a paisagem mudava, a floresta aos poucos deu lugar para uma vegetação rasteira e encostas bem íngremes, onde aqui e ali ainda se viam alguns deslizamentos, e ficou bem mais frio também. Coloquei meus casacos e deitei um pouco no chão da caçamba, sentindo um pouco de tonteira, acho que foram os primeiros sinais da altitude. 

No final da longa subida a estrada passou por uma fenda estreita na montanha e adentrou um pequeno vale na Cordilheira, plano com uma placa indicando 3260 metros de altitude. Ali, outra súbita mudança de paisagem: As nuvens ficaram para atrás, o sol apareceu ainda quente e a vegetação mudou completamente: As únicas árvores eram pinheiros ralos e o solo era mais pedregoso e todo coberto de grama amarelada e flores, as casas da primeira vila que apareceu já eram feitas de pedra, assim como os muros que rodeavam os quintais, locais de criação de hortaliças, galinhas e cabras. Ali sim, para mim, começavam os Andes da forma como eu me lembrava, lá no Peru, com pequenos vales ladeados de montanhas cinzas e altas. Logo deram à cara as lhamas, alpacas e vicunhas.





As pessoas nas vilas vendiam na beira da estrada água mineral e frutas. Quando o caminhão parava para que alguém descesse ou subisse elas corriam e a negociação era rápida, com elas jogando as garrafas e nós jogando as moedinhas ao mesmo tempo. Depois a estrada voltou a subir, atingindo no ponto mais alto 3600 metros até descer e cair em outro vale, maior e bem mais urbanizado: O vale cochabambino.


Ladeado ao norte por um trecho grande e alto da Cordilheira, onde havia lido que cerca de 1 milhão e meio de pessoas vivem, e que Cochabamba era conhecida pelo seu clima agradável, a “só” 2700 metros de altitude, e pelas faculdades de medicina frequentadas por estrangeiros dos países vizinhos. 

 O caminhão foi deixando as pessoas pela avenida principal enquanto atravessava os bairros periféricos, e a última parada foi na entrada do centro de Cochabamba, a vista da estátua do Cristo Redentor, principal atração da cidade. Ela pode até ser maior que sua irmã carioca, mas a colina em que colocaram ela não chega nem aos pés do Pico do Corcovado. 

Tomamos o colectivo 233 para o terminal de ônibus de Cochabamba, onde chegamos as 17:40, para ver se conseguíamos ao menos metade do reembolso da passagem para La Paz e se ainda haveria forma de continuar viagem aquele dia. O guichê da Trans Copacabana estava fechado e no escritório dela no lado de fora tinha uma mulher mal-humorada fechando as portas e disse que aquilo não era problema dela, e que só no dia 2 poderíamos tentar reclamar qualquer valor, e só ali em Cochabamba. Demos esse dinheiro da passagem Santa Cruz – La Paz como perdido. 

Havia ainda uma última saída para La Paz as 18:00, com previsão de chegada as 00:40. Concordamos que não valia a pena, estávamos de saco cheio de estrada por aquele dia, e que já era muito bom termos conseguido sair daquela estrada deserta para passar a noite de ano-novo na cidade. Jantamos um frango frito em um fast-food de boa aparência no terminal e fomos buscar uma hospedagem.


Os arredores do Terminal de Cochabamba são cheios de hotéis de várias categorias, mas as ruas são bem movimentadas e barulhentas, com um monte de vendedores ambulantes. Resolvemos ficar no Hotel Zabidi, a umas duas quadras do terminal, que fez por 85 bolivianos a diária do quarto para 3, ou seja, cerca de 28 bolivianos (15 reais) por pessoa. O quarto era amplo e limpo, tinha um bom sinal de wifi, a TV passava canais de praticamente todos os países da América Latina (inclusive Globo, SBT e Record). O banheiro era fora do quarto, mas tinha água quente.

Dei minhas notícias para família, tomei aquele banho que não tomava há 4 dias, e descansamos. Resolvemos sair quando eram umas 10 da noite para ver se haveria alguma festa pública ou algum lugar para beber uma cerveja quando fosse meia-noite. Mas a verdade é que a noite em Cochabamba foi bem deprimente. 

Seguimos a rua do nosso hotel, sem ninguém praticamente e com lixo acumulado em algumas esquinas, por 6 quadras até a Praça Bolívar, a principal do Centro, com a Catedral e prédios adornados com arcos, totalmente cheia de tapumes de obras e completamente vazia. Fomos recomendados por um par de policiais a paisana a ir até a Calle España, a outras 2 quadras mais para a frente, onde achamos um pub que servia cerveja gelada, de uma marca local. Estava bom, mas o preço era um pouco salgado. Na área tinham também umas duas boates, cheias, com umas minas nada más na porta (com certeza eram argentinas, pensei), mas nós estávamos de bermuda e chinelos, então nem rolaria de entrar.


No caminho do hostal passamos por um depósito de bebidas onde pudemos comprar umas paceñas (quentes!) e água, e do nosso quarto acompanhamos a chegada de 2016, vendo os vizinhos no prédio da frente lançarem alguns foguetinhos e um pessoal na calçada soltar uns rojões rasantes, e ao longe víamos alguns fogos mais sérios, mas nada impressionante.


No próximo post, vem a última etapa da viagem com a chegada (finalmente!) à La Paz.


Na série de mapas do post vem o passo-a-passo das etapas da viagem, com destaque para o trecho da estrada percorrido a pé, com o ponto de cada deslizamento e um comparativo de como era antes com o Google Street View.
Até a próxima!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Viagem à Bolívia Parte 1: Ida até Santa Cruz de la Sierra





Essa é a primeira de três partes do meu relato da minha viagem por terra até La Paz, uma verdadeira jornada Dia 28/12/2015 Cheguei a Rodoviária de São José dos Campos às 14:30 para o embarque as 15:00 no Andorinha oriundo do Rio de Janeiro e com destino a Puerto Suarez, Bolívia. As 14:45 o ônibus adentrou na Rodoviária, um Marcopolo Paradiso G7 1600 com a inscrição HiperSoft relativamente vazio (cerca de 15 passageiros, a maioria de bolivianos). Com descanso para os pés e bom espaçamento entre as poltronas, pareceu ser o melhor tipo de ônibus dentre a frota da Andorinha. O ar-condicionado era forte e copos d’água estavam disponíveis na geladeira ao fundo, junto ao banheiro, além da exibição de filmes. Além de mim somente mais uma pessoa embarcou em SJC. As 15:00 pontualmente ele deixou a Rodoviária e logo adentrou na Dutra rumo a São Paulo. As 16:30 ele entrou na garagem da Andorinha na capital paulista aonde foi feita a troca de motorista e o reabastecimento do ônibus, levando cerca de meia hora. De lá, ele se dirigiu ao Terminal Rodoviário da Barra Funda, aonde haviam outros 3 ônibus extra da Andorinha rumo a Puerto Suarez. Eu logo pensei: Vai ter uma longa fila na fronteira para passar toda essa gente, e não deu outra!
 As 17:45 ele saiu já quase completamente lotado da Barra Funda, seguindo viagem pela Rodovia Castelo Branco sob chuva, o que foi convidativo a dormir. Acordei na parada da Rodobens as 22:00 lotada para lanchar e depois fui num dorme-e-acorda madrugada adentro. O ônibus parou nas rodoviárias de Ourinhos, Assis e Presidente Prudente pelo caminho. De madrugada, mais uma parada para lanches, na altura de Nova Alvorada do Sul, já em Mato Grosso do Sul. As 6:30 o ônibus entrou na Rodoviária de Campo Grande, onde desceu uma parte dos passageiros.
Rodoviária de Campo Grande
Depois, há a entrada na garagem da Andorinha, para o último reabastecimento e troca de motorista para os 400 quilômetros finais de viagem. Esse trecho final, pela BR-262, revela muitas paisagens distintas, passando entre grandes chapadas e longas planícies de plantações. As 11:00 foi feito o almoço em uma churrascaria em Miranda, próximo a saída para Bonito, e tratei de comer o máximo que podia já que a próxima refeição seria já em solo boliviano. Depois da parada a estrada se estende solitária por um longo trecho já na região do Pantanal, uma área plana muito ampla e vasta repleta de várzens e alagados em ambos os lados da estrada. Após rodar uns 100 quilômetros sem grandes mudanças, o ônibus atravessou o largo Rio Paraguai sobre uma alta ponte e começaram a surgir umas serras, vertentes da Serra do Bodoquena, até as imediações de Corumbá.
Rio Paraguai
Na cidade, o ônibus parou 2 vezes: No terminal rodoviário e em um escritório no Centro, e praticamente todos os brasileiros ficaram por ali. De Corumbá até a fronteira é muito rápido, cerca de 5 quilômetros. Na fronteira: O ônibus passa direto pelos dois postos de controle e deixa na avenida principal da Bolívia, em Puerto Quijarro, logo após o posto boliviano. É preciso voltar andando, cerca de 300 metros, até o posto da Polícia Federal para registrar a saída do Brasil para então ir ao posto de Migraciones boliviano e registrar sua entrada na Bolívia. E haja muita paciência com as filas. Ambos os postos são pequenos frente ao movimento que recebem, tendo em vista que após o asfaltamento da estrada até Santa Cruz houve uma aumento explosivo no número de pessoas e veículos que passam e trafegam por ali. Acompanhei a partir da fronteira, um par de colegas viajantes de mochila, o Mychel e o Lucas, de Maringá, que também estavam rumando a La Paz para continuar rumo ao Peru.
Após 3 horas numa fila quente, sendo abordado toda a hora por ambulantes (principalmente crianças bolivianas vendendo água e coca-cola), onde ainda acabei sendo entrevistado pela TV Morena, a afiliada da Globo no Mato Grosso do Sul, finalmente tive carimbada a saída do Brasil.

Link para a entrevista:
http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/mstv-2edicao/videos/t/corumba/v/turistas-reclamam-de-demora-para-atravessar-fronteira-da-bolivia-com-ms/4706194/

Já no posto boliviano, foram necessários apenas 3 minutos para preencher o formulário de entrada e ter o passaporte carimbado, sem fila nenhuma. Não pediram carteira internacional de vacinação de febre amarela. Trocamos alguns reais em uma loja que fazia o câmbio de reais por bolivianos em R$ 1 valendo Bs 1,85, o que foi a melhor cotação que eu encontrei na viagem. Na Bolívia tem que atrasar o relógio em uma hora em relação à Corumbá, e duas em relação ao horário de verão brasileiro.
Ponte sobre o Arroyo Concepción, fronteira Brasil/Bolívia

Rachamos um táxi até o Terminal de Buses de Puerto Quijarro, um galpão pequeno e abafado com muitos guichês de empresas, poucos bancos para muita gente e no meio uma grande televisão de tubo transmitindo canal aberto boliviano. Mal pisamos fora do táxi e fomos atacados por uma horda de vendedores a serviço de cada empresa, cada um carregando uma prancheta com o mapa dos assentos em cada ônibus, sendo que o próprio taxista tentava atuar como intermediador mas nos atraindo para uma empresa em particular, a Trans Bioceânico -certeza deve ganhar alguma comissão por fora. Depois de barganhas e de muito pechinchar conseguimos a passagem até Santa Cruz a 90 bolivianos (o preço inicial seria de 110), saindo as 20:00, com ar-condicionado, pela Trans Bioceânico. Meio bom demais para ser verdade, né? Pois é, depois de termos jantado em um restaurante brasileiro na frente do Terminal com direito a uma cerveja Paceña bem gelada, esperamos na frente do terminal observando os ônibus para ver o que nos aguardava, o embarque é feito em uma rua de terra batida suja, onde os ônibus ficam estacionados esperando o momento do embarque, com ambulantes vendendo água e refrigerantes e crianças brincando em meio a sujeira e ao lixo acumulado. Há pelo menos umas 7 empresas que fazem o itinerário até Santa Cruz, além de táxis coletivos que seguem até locais do caminho como Roboré e San José de Chiquitos, conhecidos pelo ecoturismo e pelas missões jesuíticas do século XVIII. Ficam para a próxima vez. O ônibus da Trans Bioceânico que saiu as 19:00 não era muito inspirador, um Paradiso GV da década de 90 sem ar-condicionado, eu já torcia para o das 20:00 ser um pouco melhor e ter o bendito do ar-condicionado que haviam prometido já que tava muito calor.
Puerto Quijarro

A verdade? Os bolivianos não haviam exatamente mentido, mas...
O ônibus das 20:00 era quase igual ao das 19:00, mas tinha ar-condicionado ligado. Porém, depois de duas décadas rodando pelas estradas afora, esse não passava de uma sauna mofenta que tornava impossível respirar depois de uns 5 minutos dentro do ônibus, e tivemos que abrir as janelas a qualquer custo. O ônibus encheu bastante, com muitas famílias inteiras, algumas com bebês (tremi pela minha noite de sono) e depois entrou uma funcionária do Terminal cobrando de cada passageiro 2 bolivianos pela taxa de embarque, até entregou um bilhete impresso aparentemente ordenado. Paguei, mas me deu uma vontade de rir e depois de perguntar se essa grana iria para o bolso do prefeito ou do delegado de Quijarro, a cidade com o terminal de ônibus mais inóspito que eu já conheci. Vi depois em La Paz em algumas páginas web de jornais bolivianos que com esse dinheiro Quijarro está construindo um novo terminal de ônibus, e tomara que esteja mesmo.

O ônibus saiu as 20:20. Na Bolívia nenhum ônibus sairá na hora (só se talvez, segundo Murphy, você chegar atrasado), poucos terão um ar-condicionado verdadeiro e nenhum terá cinto de segurança nas poltronas, pois não é exigido pelo código de trânsito boliviano que os ônibus tenham cintos para os passageiros. Ele saiu de Quijarro por uma rua de terra secundária até a rodovia, mas poucos minutos depois ele entrou na cidade vizinha de Puerto Suarez, a maior da região, aonde ficou mais uma meia hora em frente a um escritório da empresa vendendo passagens até lotar, enquanto que muitos ambulantes, principalmente crianças, entravam no ônibus vendendo água, biscoitos e sanduíches. Já eram umas 22:00 quando ele retornou à estrada, mas poucos metros depois havia uma blitz de policiais bolivianos, que paravam todos os ônibus para revistar o bagageiro e checar os documentos dos passageiros. O brasileiro ou outro estrangeiro que não tiver feito os procedimentos de entrada na Bolívia não passa daqui. Depois da checagem, continuamos viagem, mas no meio do nada o ônibus começou a dar uns trancos: A quarta marcha não pegava mais! O motorista teve que se virar e passar da terceira para a quinta direto, e isso demorava um pouco em alguns casos. Sorte que a estrada era bem plana, pavimentada com concreto de boa qualidade, e o assento do ônibus era confortável, pude dormir quando as crianças das famílias a bordo sossegaram.
Após 11 horas de viagem, o ônibus adentrou o Terminal Bi-Modal de Santa Cruz de La Sierra, com o sol começando a aparecer. O Terminal de Santa Cruz apesar de grande já estava repleto de gente, muitos vendedores pra lá e pra cá gritando os nomes dos destinos (SUCRE, SUCRE!! COCHABAMBA!!), e um monte de guichês de empresas, além de abrigar a estação de trem da cidade, aonde parte o trem da morte e uma outra linha que vai até Yacuíba, na fronteira com a Argentina. Haviam também muitos mendigos e ambulantes espalhados pelo chão do terminal, além de crianças correndo pra lá e pra cá entre as pessoas, algumas com skates e até velocìpedes. Procuramos pela empresa que segundo havia pesquisado nos fóruns da internet era a melhor opção para La Paz, a Trans Copacabana, só que há duas empresas com o mesmo nome e cores: Trans Copacabana S/A e 1 Trans Copacabana M.E.M. Chegando no guichê, a vendedora disse que as passagens para La Paz estavam em situação "condicional", ou seja, que por causa dos deslizamentos provocados pelas chuvas intensas na estrada não havia a certeza de que iriam sair os ônibus para a capital. Compramos os bilhetes (220 bolivianos para a classe cama, a única disponível) para sairmos as 15:00, a vendedora disse para estarmos no guichê as 14:30, se não houvesse a partida do ônibus ela nos devolveria o dinheiro.
Interior do Terminal de Santa Cruz de La Sierra

Pátio do Terminal de Santa Cruz de La Sierra

Nesse meio-tempo de espera, resolvemos ir dar uma volta no Centro de Santa Cruz. Deixamos as malas no guarda-volumes, eu aproveitei e já garanti a minha passagem de volta para Quijarro no trem, na classe Ferrobus (salgados 235 bolivianos) e fomos para a avenida no lado de fora do terminal, cheia de camelôs e bastante movimentada. O transporte na cidade é todo feito em vans e microônibus apertados, que cobram 2 bolivianos. Acabamos descobrindo qual era a linha que deixava mais perto da praça principal -24 de Septiembre-e em uns 15 minutos lá estávamos. Bem-conservada e rodeada por belas construções, como a sede da prefeitura da cidade e do prédio da sede da Província de Santa Cruz, semelhante aos antigos Cabildos.
Sede do Departamento de Santa Cruz

Prefeitura de Santa Cruz
A Catedral de San Lorenzo Mártir destoa do tom branco das construções, ela foi construída inspirada nas igrejas das missões jesuíticas que existiam na região, e seu interior apesar de vasto é bem simples. Ainda era muito cedo, por volta das 7 horas da manhã, e tanto a praça como as ruas do Centro cruceño estavam ainda vazias.
Catedral de San Lorenzo Martir

Fomos andando até o Parque El Arenal, a umas poucas quadras de distância, sob a sombra dos arcos e marquises sustentados por pilares que adornam as calçadas e fachadas daquela área de Santa Cruz. O Parque afinal, é pequeno e modesto, com um laguinho e uns jardins, nada mais. A partir dele começa uma feira estilo camelódromo por algumas ruas, onde vendia-se de tudo, roupas, eletrônicos, jogos e comida de rua, composta praticamente de frango cozido em óleo, e o cheiro se espalha por todo o lugar. Outros ambulantes espremiam laranjas para fazer suco na mão mesmo. E o trânsito de carros e vans rodando por ali naquele rolo todo. A 25 de Março chegava a parecer um boulevard francês comparado a aquilo.
Passamos em uma lanchonete com cara mais confiável e comemos umas salteñas, empanadas típicas da cozinha boliviana, depois em um supermercado para comprar uns biscoitos e água para a próxima etapa da viagem. Outra van com o letreiro Nueva Terminal nos levou de volta a Rodoviária, e ficamos fazendo hora até a saída do ônibus. No segundo andar há os restaurantes, que cobram barato por um hamburguer completo ou um PF com bife, frango ou milanesa (entre 15 e 20 bolivianos) e bastante espaço, onde um viajante pode esticar um saco de dormir caso esteja cansado.
As 14:30 fomos no guichê e a atendente garantiu que haveria a saída para La Paz as 15:00, dito isso fomos no guichê de serviços do terminal pagar a taxa de embarque (3 bolivianos) e as 14:50 o ônibus encostou na plataforma, um Marcopolo Paradiso G6 de chassi Scania, de boa aparência. Perguntamos se havia ar-condicionado, e o motorista disse que tinha calefação, por causa do frio nas alturas, e que enquanto estivéssemos na parte baixa as janelas poderiam ficar abertas. Faz sentido. Os assentos eram estilo leito, largos e reclinavam bastante.
Ônibus Santa Cruz X La Paz

O ônibus saiu as 15:15, e na saída da Rodoviária ele parou para um pessoal colocar uns pacotes bem grandes no bagageiro, o que era eu não sei. Pelo restante da tarde ele seguiu pelas terras planas da Província de Santa Cruz, por uma estrada até bem-conservada de pista simples, mas sem acostamento, com quebra-molas aqui e ali e atravessando um monte de pequenas vilas pelo caminho, aonde o perfil indígena daquela população ficava mais evidente, assim como a falta de infra-estrutura: Muitas casas sem acabamento, algumas de pau a pique, esgoto a céu aberto e ruas de terra batida repletas de barracas de vendedores de vegetais e até de carne (!) Pelo caminho a estrada também atravessa muitos rios caudalosos, oriundos da cordilheira que se aproximava cada vez mais, já visível no horizonte; e que correm todos no final até o Rio Madeira, que por sua vez deságua no Amazonas, ou seja, aquela região de Santa Cruz já faz parte da Bacia Amazônica.
O ônibus não parou em nenhum lugar específico por toda a viagem para comer. Adormeci pensando que iria acordar em La Paz e aonde passaria o Reveillon lá. Mal eu sabia o que esperava na estrada mais a frente.

Continua na Parte 2

Os mapas deixo para o próximo post

Dicas no trecho da fronteira:
-Quem estiver vindo no Andorinha para a fronteira tente pedir para o motorista te deixar no posto de fronteira brasileiro. Se estiver com mala no bagageiro talvez não dê, mas se estiver só com mala de mão provavelmente não haverá problema nenhum.
Há duas empresas que fazem o itinerário entre São Paulo e Santa Cruz de La Sierra: La Preferida e Cruceña. Mas eu li em algum lugar que há que trocar de ônibus no meio do caminho, e os que eu vi passando pela fronteira não pararam para os passageiros fazerem os procedimentos de entrada e saída dos países. Não sei como funcionam.
O trecho de ônibus entre Quijarro e Suarez até Santa Cruz é feito por várias empresas. Enquanto esperava na rua poeirenta do Terminal de Quijarro eu fiquei observando esse movimento e anotei quais eu percebi que tinham a melhor frota.
- As empresas IDI Suarez, Quijareño e 23 de Marzo tinham a melhor frota, mais nova e todos os ônibus que eu vi tinham ar condicionado, alguns ônibus com dois andares.
-As empresas Baruc e 2 de Mayo tinham uma frota mais mista, parte com ar-condicionado, outra mais velha e quentona.
-As duas que me pareceram ser as piores eram a Trans Perla Chiquitana e a que eu usei, a Bioceânico. Só vi ônibus velho, e a minha experiência de viagem confirmou isso.
-Procure sempre extrair o máximo de informação dos vendedores a respeito dos ônibus, peça para ver o ônibus se possível. Ônibus cama não é a mesma coisa que Leito. Há uma hierarquia que pelo que eu entendi é a seguinte: Regular - SemiCama - Cama - Leito. Mas mesmo um ônibus leito pode ou não ter ar-condicionado, e a chance de ter banheiro e/ou cinto de segurança nas poltronas a bordo é mínima. E não dá para ser muito exigente quanto a pontualidade em nenhuma das classes.
Leito em baixo e Cama em cima. Com ar-condicionado

Regular sem ar-condicionado
-A taxa de embarque é sempre cobrada a parte, em grandes Rodoviárias como Santa Cruz, Cochabamba e La Paz ela é feita em guichês dentro da Rodoviária, mas em pequenos terminais como Quijarro o normal é durante o embarque vir um funcionário do terminal com alguma identificação e cobrar a taxa. Em caso de dúvida nessa situação, pergunte ao atendente da empresa.
-A estação do trem da morte fica a duas quadras do Terminal. Há pelo menos uma partida até Santa Cruz por dia, em 2 diferentes classes: Regional Express e Ferrobus (a mais cara). Mas segundo o que eu li não é muito provável conseguir passagem no mesmo dia da partida do trem. Mais para a frente eu falarei como foi a minha volta para Quijarro no Ferrobus, mas já adianto que ele é bem menos fatal do que o apelido sugere.
-Para atravessar a fronteira espere o meio do dia, entre 11 da manhã e 2 da tarde, que é quando o movimento nas filas fica menor. O ápice do movimento, especialmente no lado brasileiro, é no começo da manhã, quando chegam os transportes vindos de Santa Cruz, e no meio da tarde, quando chegam os ônibus vindos do Brasil.
-A região entre Quijarro e Santa Cruz de La Sierra está virando um novo pólo de turismo na Bolívia, com atrações que incluem o Pantanal em Suarez, os chapadões, cachoeiras, montanhas e fontes de água quente na região da cidade de Roboré; e as missões jesuíticas dos séculos 17 e 18, algumas consideradas patrimônio mundial pela UNESCO, em Santiago de Chiquitos, San José de Chiquitos e mais ao norte, na região de San Ignácio de Velasco. Fica para a próxima.